sexta-feira, 20 de abril de 2007

Um "FREE" para a "LIBERDADE

Por Vinícius Borba



Terça-feira, 27 de março de 2007

1:00 h( uma hora da matina)

A noite me reanima. Sempre preferi ler à noite, estudar, fazer atividades físicas, fazer amor( Se bem que... Deixa pra lá!) e coisitas mais. Como à noite todo gato é pardo, e como bom gato pardo, leonino safo, desde os doze que a rua não me faz mistério e a única coisa da qual eu jamais fui liberto nesta vida errante foi o medo.

Ah, o medo.. Instrumento de auto defesa mais útil na vida do ser humano. Até os dezessete anos, sofri de uma tensão muscular intensa em função do medo de me expor a criminalidade e o uso de drogas. Não me envergonho de meu passado, mas a partir dos 17, conheci minha prática de fé. Um ano após, me converti e desde então tudo às pampas.

Esta prática de fé consiste da recitação de um mantra. Mantra é,resumindo, uma frase ou expressão que tem sua conformação sonora capaz de mexer energias em nosso meio ambiente, seja no nosso interior(principalmente), seja no osso meio externo, até por extensão de nossa mudança. Mas praticamos o bem como postura de AÇÃO no dia-a-dia e este é o nosso princípio maior, o altruísmo.

Venho da rodoviária, na última Van, expresso da meia-noite...
Se tivesse tomado a saideira com os colegas da faculdade--Tiago e Pedro-- só iria para casa as duas da madrugada, no bom e velho "jeremias" , o tal ônibus corujão. A vida de sardinha nas lotações é um caos, entra esmagado,sai espremido. È o sistema ininteligível de transporte coletivo do DF,sistema safado, em que o lucro é o que manda, e o principal --o consumidor--é o boneco que paga o preço do luxo dos monopolistas, estilo Amaral e Canhedão...Mas vá lá, eu só queria chegar em casa.

Vinham na lotação dois amigos dialogando comigo durante a viagem da Rodô à São Sebastião. E eu entretido na conversa-- eu que nem falo muito-- perdi minha parada. Eu moro no alto do Morro Azul, e devia descer na primeira parada da vila. Tive de descer na segunda. Quase dois Km lá de casa. Tá de boa, a noite fresca, eram apenas uma da manhã. Eu já subira o morro algumas milhares de vezes a pé e, fora minhas dores musculares, nada me abalaria. Nem mesmo minhas dores, talvez, no máximo, aquela última cerveja que pesou mais. Sossegado.

A vista de cima do Morro Azul em São Sebascity é cabulosa. Para quem chega, do lado esquerdo a espetacular e iluminada(à noite) Vila, com seus 90.000 habitantes. À direita, o retrato maior da exclusão social, a "escola superior do crime", onde o reitores não duram muito e os acadêmicos estão descontentes, visto que aquela era sua última opção no vestibular no qual nunca se inscreveram. Lá há cotas para brancos... Ironias à parte, falo da Papuda. Convivemos em São Sebastião com o presídio de Brasília. E sempre que alguém chega em minha casa, que tem uma vista panorâmica linda, me pergunta, ao ver o prédio de muros altos: De que se trata? E aponta. Respondo o que é, e alguns demonstram espanto. Sempre brinquei: --De vez em quando passa um aqui em casa correndo, pede uma água e pula na doida cerrado a fora.Brinco. E as pessoas ainda retrucam inseguras: --Sério? Mostro então
que meu pai era "gepeto" e solto uma boa gargalhada. A comédia vive da ridicularização e exagero do trágico. Mas eu brinco por quê vivo esta realidade a tempos, e trabalho muito no social para transformá-la.

Mas ontem, durante minha caminhada de subida, curtindo a vista, vim recitando meu mantra, para reunir força vital e superar minha maldade, desatento, olhando para o chão enquanto recito, até para contar melhor a respiração e ordená-la, levanto a cabeça, quase que por instinto, e a menos de três metros está um rapaz todo de branco. Tomo logo um susto descomunal, mas, habituado a vida de rua, continuo a recitação do mantra e ao me aproximar do rapaz, este sem camisa, com a mesma pendurada no ombro, calça branca e chinelos, paro de orar e dou boa noite. Ele logo responde:
--E aí, doido.Tá falando sozinho?
Me ouviu falando chinês misturado com sânscrito em voz alta. Qualquer um fica meio assim. Termino de passar por ele, minha adrenalina está a toda. Paro para não mostrar receio. Respondo:
-- Não, falando só não, estou rezando!
E ele:
--Pode crer. Aí "mulequin", tem um cigarro aí?

Penso comigo e analiso. Moro em uma chácara, e para eu comprar cigarro tenho de andar uns 3 Km. É o meu último dos "moicanos", comprei picado lá na Rodô, para depois da janta, o digestivo...Minha decisão é difícil, mas ele solta outro argumento:
--Tô de saidão da Papuda! Se não constar o cigarro, não dá nada...

Eu sei que, quando são liberados da Papuda, são soltos à meia-noite, e aquele mano vinha numa alegria enorme. Repensei, enquanto ele já se punha a caminhar novamente.
--Aí chegado, tem o último aqui.

Os olhos dele brilharam. Não era mais um cigarro, não. Cigarro também se fuma dentro da "jaula", mas aquele, aquele era o primeiro que ele arrumava em liberdade. Me alegrei por maracar aquela preza. Falei pra ele:
-- Oh "Fí", sua família ta te esperando, eles todos te esperam. Talvez tu vá ouvir uns sapos. Mas não pare não, adianta um trabalho, e não esquece...ESTUDA!

Me cumprimentou com mão firme, me olhou nos olhos, e eu nos dele, seguimos nossos caminhos.

Não sei quanto tempo ele passou preso. Não sei em que pé ele vai encontrar a guerra de gangues na favela ou se tem algum programa de reinclusão social a espera dele, mas eu, como agente comunitário, nunca vi. Não, nunca.

Subi refletindo para casa. Agora rezava com um ânimo ainda maior. Não há oração sem resposta, como demonstra a filosofia que pratico. Naquelas pequenas palavras trocadas com o rapaz, me senti na responsabilidade de não deixar com que ser humano nenhum mais se rebaixe. Mas naquela hora...só queria chegar em casa. São uma e meia da matina.

3 comentários:

Fefê Alves disse...

Vinícius "fi", foda!
(e olha que abomino o uso diário e prolixo de palavrões!)
mas tua crônica é poderosa!

Anônimo disse...

É "Fí", sei como vc se empolgou com essa crônica, porque conheci ela de sua própria boca.
Para mim LIBERDADE é a palavra: vc curtindo a caminhada, o "figura" fora da jaula e ainda seu conselho pra ele estudar. Estudar liberta né? Ou pelo menos, deveria...te liberta pra ver e interpretar esse mundo cão (e ai, as vezes nem é bom), mas também pra vc ler e entender um bom texto.

Flavio disse...

Cabuloso!!! Bacana essa tua crônica... Continua nesse teu lado social que tudo no final dá certo!!! PArabéns!